Qui, 09 de dezembro de 2021, 06:28

Do progresso à saudade: pesquisa aponta as representações das ferrovias em Sergipe
Trabalho mostra que as formas de ver as ferrovias mudaram ao longo do tempo
Estação de São Cristóvão na década de 1920. Foto: Reprodução/Estações Ferroviárias
Estação de São Cristóvão na década de 1920. Foto: Reprodução/Estações Ferroviárias

“É mais fácil ir à Europa do que a Sergipe”, disse o então deputado Rodrigues Dória. O ano era 1903. Dez anos depois, com a inauguração dos primeiros trilhos, o sonho de uma ferrovia em solo sergipano, enfim, se concretizava após tentativas frustradas. Naquele momento, ela representava o progresso. Anos depois, passada a euforia, as notícias de acidentes ferroviários no estado associaram as linhas férreas ao perigo. Inativas desde 2013, elas ainda continuam a percorrer outro trilho - o da memória e os seus saudosismos.

As mais diversas percepções sobre as ferrovias no estado desde o apogeu ao declínio foram estudadas por Bruno de Abreu Oliveira no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Com o título “Nos trilhos da memória: a representação das ferrovias no imaginário sergipano”, a pesquisa de mestrado, orientada pelo professor Claudefranklin Monteiro Santos, abrangeu um período que vai de 1913 a 1979.

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Bruno de Abreu é mestre em História pela UFS. Foto: Adilson Andrade/Ascom UFS
Bruno de Abreu é mestre em História pela UFS. Foto: Adilson Andrade/Ascom UFS

O contexto que despertou Abreu para o assunto foi a greve dos caminhoneiros em 2018, que levantou questionamentos sobre as matrizes de transporte no país. “Dessa maneira, eu procurei saber porque, no caso de Sergipe, as ferrovias deixaram de funcionar e, a partir daí, cresceu esse embrião que eu vim a desenvolver na minha dissertação”, disse.

Para realizar o trabalho, Bruno afirmou que consultou diversos materiais, como atos de governo e jornais. Por conta da pandemia da covid-19, ele precisou recorrer às redes sociais para conseguir relatos sobre as ferrovias das pessoas da época ou que têm contato com as lembranças do período ferroviário.“Todo esse material acabou gerando a seguinte questão: a ferrovia modificou o seu imaginário ao longo do tempo”, concluiu.

“O grande barato do trabalho de Bruno são os impressos e também a oralidade para compreender esse momento tão significativo da história econômica de Sergipe que não avançou e deixou registros importantes de uma época não necessariamente romântica, mas que mexeu muito com o imaginário das pessoas”, destacou Claudefranklin Monteiro.

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Nos vagões do progresso

Depois de projetos fracassados, os primeiros trilhos de uma ferrovia em solo sergipano foram inaugurados em 1913, 59 anos depois da fundação da Estrada de Ferro de Petrópolis, a primeira do país, construída pelo empresário Barão de Mauá.

As linhas férreas se iniciavam em Rio Real, na Bahia, e seguiam até a cidade sergipana de Propriá. Segundo a pesquisa, 20 municípios no estado abrigavam estações, como Tomar do Geru, São Cristóvão, Aracaju, Riachuelo, Rosário do Catete e Carmópolis.


Mapa do percurso da linha ferroviária Timbó-Propriá. Foto: Reprodução/Estações Ferroviárias
Mapa do percurso da linha ferroviária Timbó-Propriá. Foto: Reprodução/Estações Ferroviárias

Aguardada com ansiedade por políticos, que tentavam creditar a iniciativa a si, e por parte da elite da época, a Timbó-Propriá era, antes mesmo de se tornar realidade, o anúncio do progresso em uma terra que queria se conectar com o país.

E motivos não faltavam. Segundo a pesquisa, o principal meio de transporte era o fluvial. O terrestre, com pouca expressividade, “se baseava em estradas de terra bastantes ruins por onde passavam carros de bois ou afins e que nos períodos de chuvas tornavam-se barreiras intransponíveis”. A falta de um meio eficiente para transporte de mercadorias era apontado como causa para o atraso econômico de Sergipe. E as ferrovias despontaram como solução.

O novo modal conferiu maior grau de competitividade à economia sergipana nos planos nacional e regional, conforme o estudo.“Sergipe pôde, finalmente, estar inserido no cenário nacional ao conseguir encurtar as suas distâncias que, apesar de não serem faraônicas, eram um complicador no custo de transportes de mercadorias oriundas do interior”, escreveu Bruno.

E trouxe também desigualdades: “De um lado, havia a nata culturalmente dominadora que determinava os preceitos de utilização da ferrovia e do outro o grande público ligado aos setores populares que participavam do dia a dia ferroviário, principalmente, como subalternos”.

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Bruno afirmou que a ferrovia teve importância para além da economia, a exemplo, atuou na expansão da comunicação e trocas culturais.“Ela representou um ponto de encontro e também um local no qual essas pessoas conseguiam viver de uma forma geral os aspectos de outros locais de Sergipe.”

Das páginas dos jornais aos fios da memória: o medo, o protesto e a saudade

Passadas as campanhas de apoio às ferrovias, denúncias de trabalho análogo ao escravo na construção da linha férrea e festividades com a instalação, os jornais se limitaram a divulgar horários de trens ou desembarque de figuras notáveis. As linhas de ferro passaram da excepcionalidade para habitualidade nas páginas da imprensa sergipana.

Um acidente, em 1925, entre Salgado e Boquim, fez as ferrovias voltarem às capas dos jornais. A notícia se espalhou pelo estado e deixou a população estarrecida, informou a pesquisa. Com relatos frequentes de descarrilamento após o ocorrido, “a ferrovia, antes vista como a corporificação do progresso e da civilização, passou a ser sinônimo de morte”. Sergipe também ficou conhecido por registrar em 1946 o maior desastre ferroviário do país.


Curiosos em volta da locomotiva no maior acidente ferroviário do Brasil. Foto: Reprodução/A Noite Ilustrada
Curiosos em volta da locomotiva no maior acidente ferroviário do Brasil. Foto: Reprodução/A Noite Ilustrada

Áreas de grande circulação, elas também foram palco de protestos e atos políticos, a exemplo a Revolta de 1924 e a Revolução de 1930. Também receberam o ex-presidente Getúlio Vargas, configurando espaço de poder e popularidade.

Já, na metade do século XX, as ferrovias começam a perder força, com a preferência do Brasil pelo sistema rodoviário. Em Sergipe, o transporte de passageiros funcionou até 1977. Após esse ano, a ferrovia se restringiu à locomoção de cargas. Inativa desde 2013, ela continua na memória de quem, a partir dos vestígios, gostaria de conhecer aquele período e ver o que sobrou mais preservado e de quem viveu e sente saudade do barulho do trem ou de causos que perpassaram os trilhos, apontou o estudo.

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Ferroviário aposentado, Joélio Ribeiro, 69, trabalhou por mais de 20 anos na área de manutenção do setor no estado. “Aí eu fiquei triste quando acabaram tudo isso.Transportava muito aqui [na estação de São Cristóvão].Eu via trens de passageiros dia de quarta-feira, tinha um suburbano que vinha de Salgado até o centro de Aracaju,onde tinha uma estação que [recebia] produtos que vinham da Bahia”, relembrou.

Como escreveu Bruno, a ferrovia é uma morta-viva.“Apesar dela ter acabado, continua viva na memória e no imaginário de todos os sergipanos”, disse.

Recuperando o tempo: projeto em São Cristóvão

O projeto Pedal nos Trilhos, organizado pela ONG Amigos do Trem, foi criado em 2018 para recuperação da malha ferroviária de São Cristóvão e, consequentemente, implantação de trens para fins turísticos.


Trole desenvolvido pelo projeto Pedal nos Trilhos. Foto: Reprodução/Pedal nos Trilhos
Trole desenvolvido pelo projeto Pedal nos Trilhos. Foto: Reprodução/Pedal nos Trilhos

“O intuito da gente é recuperar um pouco da história que estava se perdendo em nosso estado. A gente via a falta de respeito e não preservação desse patrimônio”, afirmou Mateus Oliveira, diretor da ONG Amigos do Trem em Sergipe. Ele ainda acrescentou que os troles, utilizados na manutenção das linhas férreas, foram transformados pelo projeto em veículos para passeios nos trilhos da antiga estação de São Cristóvão.

Além da memória e do cuidado com o patrimônio, o projeto, segundo Mateus, tem outro alvo: “Trazer emprego e renda para o município que hoje vive apenas da maré e, através desse projeto, a gente poderia trazer emprego para toda a população, principalmente, aqueles que residem próximo à linha férrea”.

Abel Serafim - Rádio UFS

comunica@academico.ufs.br


Atualizado em: Qui, 09 de dezembro de 2021, 19:33
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